Especial de Yule por Emídio Miguel Pilato Junior
Era uma vez, em um Yule não tão distante...
Em uma noite ponteada de estrelas, o vento frio farfalhava as árvores da vila de Tishea, já coberta de neve. Fumaças negras saiam das chaminés das casas, enquanto alguns aldeões se esquentavam em uma bela fogueira no centro da vila. Os pinheiros, as únicas árvores que sobreviviam ao inverno com folhas verdes, eram homenageados com fitas e belas esferas coloridas, enfeitadas de runas.
Na casa grande dos Tishea, haviam três cavalos parados a frente, e somente dois estavam sendo montados.
- Mas que porcaria, Enrick! Grita Sir Amig. Estamos atrasados, e você sabe que a condessa não gosta que cheguemos atrasados à ceia!
- Espera, sogro! Não consigo encontrar minhas botas! Ah, aqui estão!
- Guri enrolado! Porque eu permiti que você se casasse com ele mesmo, Merion?
- Porque é um guerreiro valente, ousado e o mais encantador cavaleiro de Logres? Sir Amig responde com um gesto de “corta essa”.
Sir Enrick Stampid sai ainda ajeitando as botas. Corre em direção ao seu impressionante cavalo negro e monta em um salto.
- Vamos Hefesto! Sir Amig, o senhor está com os presentes? Não quer que eu os leve?
- Além de me fazer esperar ainda me chama de velho? Vá a merda, guri!
E os três parte de Tishea rumo a Sarum para mais uma ceia na corte.
***
- Não sei por que, Aldron, mas não parece uma boa ideia saquear viajantes na noite de Natal...
Dois jovens estão agachados no topo de uma colina, que é margeada pela estrada que leva a Sarum. Aldrom é um jovem com cerca de vinte verões, tal como seu comparsa Carlan. Mas enquanto Aldrom é um sujeito mirrado, com cabelos castanhos oleosos e desgrenhados, Carlan é alto e bem constituído. Não tem cabelos, e por isso protege a cabeça do frio usando um gorro. Ambos estão embaixo de um cobertor pesado e sujo.
- Natal? Estamos no Yule, seu cristãozinho de merda!
- Mas o padre disse que é Natal, que é quando o filho de Deus nasceu e...
- Largue mão desse papo, Carlan! E não é uma má idéia não, porque boa parte dos aldeões e nobres imbecis que caíram nesse engodo dos padres está partindo para a casa dos parentes repletos de presentes caros!
- Não sei, Aldrom. Me parece heresia...
- Pois para mim me parece um bom negócio! Pss, Quieto! Parece que levamos a sorte grande!
Lá no longe da estrada, eles vêm a luz de uma tocha formar a silhueta de três cavaleiros, mas é bem destacado que se trata de dois homens e uma mulher. Aldron não contem sua satisfação.
- Há! Uma nobrezinha idiota com dois soldados imbecis fazendo guarda! Além de presentes, vamos rechear a galinha e ter uma ótima ceia!
Carlan balança a cabeça pedindo perdão a Deus pela sua burrada de seguir seu amigo, e ambos descem a colina, aonde guardaram suas armas e seus cavalos.
***
Seguindo pela estrada de terra batida com a cobertura branca da neve, Sir Amig, Sir Enrick e Marion se mantem atentos à estrada a frente.
- Tem certeza de que o Algar irá gostar do presente? indaga Marion para seu marido.
- Uma taça de prata adornada de dragões! Se ele não gostar, eu pego pra mim!
- Não senhor! responde Sir Amig. Se ele não gostar, eu o faço engolir! Cinco Libras na porcaria de um copo! Aqueles mercenários de Londres sabem mesmo arrancar cada moeda do nosso bolso!
- Eu conheço um senhor ranzinza que gastou muito mais por uma noite com uma cortesã franca... responde Enrick já sem muita paciência.
- Qual é, guri! Uma ostra à moda franca não um prato que se tem todo dia! E se você soubesse como ela fazia bem um...
De repente, Marion puxa as rédeas de sua montaria, fazendo-a dar uma leve corcoveada para o lado e bufar. Sussurrando, ela diz séria:
- Parem!
O tom que ela usou para dizer isso fez com que os cavaleiros instintivamente levassem as mãos ao cabo de suas bainhas. Olhavam com atenção os arredores, e conseguiam, com seus ouvidos treinados, escutar um leve e estranho movimentos de folhagens à frente, logo atrás de uma colina eu mais lembrava uma muralha verde.
Um estampido de cascos, um estalar de arreios, o som de movimentos a cavalo. Suas armas já estavam prontas para o combate quando viram dois garotos a cavalo vindos em sua direção. Empunhando espadas de boa qualidade e cavalos descentes, o que significava que eram bandoleiros do pior tipo: ladrões de nobres.
Quando os jovens se aproximaram, perceberam tarde seu erro: não eram viajantes quaisquer, mas sim membros da lendária Ordem da Cruz e do Martelo. Já os tinham visto marchando para as campanhas, já os tinham visto passear por Sarum e os bardos já tinham feito o favor de lembrar o quão mortais e habilidosos eram. Só tiveram tempo de apear seus cavalos e partir em dispara, enquanto já eram perseguidos à toda por Sir Enrick e Sir Amig. Lady Marion vinha logo atrás fazendo pontaria com o arco enquanto conduzia sua montaria com os joelhos.
Seguindo a estrada, levantando terra e neve quando os cascos dos cavalos tentavam terminar a curva, os jovens partem gritando de puro pavor. Após a longa colina, se deparam com campos abertos em ambos os lados da estrada.
- Vamos nos dividir! Grita Aldron para seu amigo. Boa sorte e que seu deus o proteja! E cada um parte para um lado, cruzando os campos brancos.
No encalço, os cavaleiros percebem a estratégia dos garotos e também se dividem: Marion e Sir Enrick seguem Carlan, enquanto Sir Amig segue no encalço de Aldron.
***
Carlon olha pra trás e vê que se deu muito mal, pois dois cavaleiros o perseguiam. Tenta despista-los seguindo para um bosque, mas antes que consiga virar as rédeas, sente uma dor lancinante nas costas: uma das flechas de penacho branco de Lady Marion atinge seu braço esquerdo, muito perto do ombro. Vendo que não consegue mexer muito bem o membro ferido, ele olha pra trás com puro pavor e vê Sir Enrick em fúria, bradando seu martelo de guerra enquanto segura uma tocha na mão que também segura os arreios.
Sem opção e com dificuldade, manobra sua montaria para o impacto derradeiro. Frente a frente com uma das lendas da Bretanha, suspira e brada sua espada enquanto lágrimas incontidas correm seus olhos.
Sir Enrick teria sido piedoso com tamanha falta de trato com o campo de batalha desse jovem, se visse seu pranto. Mas a luz da tocha só lhe permitia ver um homem grande como ele portando uma espada e esperando uma chance de atacar.
Pressionando o lombo do cavalo para que galope com velocidade, Carlon se segura com dificuldade e manobra sua espada em carga, esperando mirar o rosto ou o torso do cavaleiro. Mas quando Sir Enrick lhe alcança, só consegue sentir seu peito sendo pressionado a tal ponto de fazer seu coração e pulmões explodirem. No instante que a respiração está sessando, só consegue pensar:
- Perdoa-me, Senhor. Não sei o que faço...
Derrubado seu inimigo do cavalo, Enrick desmonta e vai checar o eu sobrou do jovem. Chega junto ao corpo ao mesmo tempo que Marion, que vinha o acompanhando à distância. Aproximando o fogo do que sobrou do rosto de seu inimigo, ele percebe os rastros das lágrimas. Suspira, se baixa para fechar os olhos estalados do morto e levanta. Sua amada o consola envolvendo-o com um abraço, que ele termina também por envolve-la com o braço que não segura a tocha. Nesse instante a neve desce devagar do céu limpo de Logres.
***
- Volte aqui, seu merda! Vou fazer essa espada sumir no seu rabo!
Aldron olha para trás em desespero, e acelera a corrida do cavalo.
À frente dos dois, se ergue o que parece um pequeno monastério ou convento, ladeado por pequenas colinas. Desesperado, o jovem tenta uma jogada insitada: fazer uma curva com o cavalo e avançar com velocidade contra o velho cavaleiro e, ao mesmo tempo que tenta se proteger do ataque inevitável, vai tentar derrubar seu oponente da sela, passando à sua esquerda.
Quando Sir Amig vê o garoto fazendo uma curva no barranco, lambe os lábios em puro extasse e avança em carga com a espada.
Quando se chocam, Amig percebe a jogada esperta do garoto, cravando a lâmina nas suas costas, mas não consegue evitar o encontrão, caindo. Ele cai em uma pequena encosta, que o faz cair rolando e sujando o casaco surrado no sangue do garoto.
Aldron percebe um calor estranho nas costas, e sente-se subitamente fraco. Olha a frente e vê o velho guerreiro ensanguentado e se anima, investindo rapidamente com o cavalo. Pretende esmaga-lo sob as patas de sua montaria.
Amig se levanta com dificuldade, e só escuta o barulho de cascos se aproximando. Mais que depressa, rola para o lado e joga um punhado de lama e neve na cara do cavalo. O anima sente seus olhos arderem, que empina e corcoveia, mas não derruba seu inimigo. Praguejando os deuses, se levanta, pega o saco que contem os presentes e corre em direção à estrutura a frente.
Sobre um pequeno lance de degraus em duas passadas largas e corre empurrando as portas de madeira com os pés, esperando alguma resistência do objeto trancado. Mas estava aberto, e Sir Amig cai, fazendo muito barulho. Levanta-se rapidamente e tranca a porta com uma viga de madeira, que estava ao lado.
Ofegante e tremendo de adrenalina, espera seu oponente surgir pela porta. E percebe que sua espada ficou lá fora.
- Olá? Amig escuta logo atrás de si, uma voz infantil. Vira-se lentamente e vê um pequeno garoto, na faixa dos oito anos, com cara de sono e esfregando os olhos.
- Olá guri, fala o velho cavaleiro com curiosidade. Você não devia estar na cama?
Nisso outras crianças surgem, com as mais variadas idades. Olham curiosas para o senhor, cochichando umas com as outras.
- Quem é o senhor? Pergunta uma pequena garotinha, com cabelos vermelhos e sardas nos rostos.
O velho parece muito confuso. Meio balbuciando, responde:
- Não, é o...
- Noel? Fala um pequeno menino de no máximo cinco anos. Que nome engraçado! E o que é isso?, apontando para o saco de estopa abarrotado de coisas.
- Ah, são presentes, e... Sir Amig, o perspicaz homem de combate, acaba de perceber a encrenca que criou.
Os pequenos ficam eufóricos, seus olhos brilham fitando o saco contendo muitos objetos. Algumas não se contem e abraçam as pernas do cavaleiro em agradecimento Enquanto Sir Amig tenta encontrar uma resposta adequada, olha para o lado e vê uma pequena freira idosa se aproximando lentamente e com cautela.
- Quem é o senhor?
- Olá, irmã! Que bom que você chegou! Eu sou Sir...
- Noel! Grita uma criança no meio do grupo, para o qual Sir Amig olha com uma cara muito irritada.
- Irmã Mary, ele veio nos dar presentes! Grita a pequena ruiva.
- Esperem ai, gurizada! Grita Sir Amig em plenos pulmões e afastando algumas crianças que ainda agarravam suas pernas. Não é bem assim! Esses presentes não são para vocês! Mas que loucura é essa! Que lugar é esse?
Na hora as crianças murcham de decepção, e alguns focos de choros são audíveis. Irmã Mary parece ainda mais confusa, e responde o solicitado:
- Este, Sir Noel, é orfanato de Santa Ângela. Essas crianças tiveram seus pais mortos por saxões nas últimas campanhas militares, e como ninguém está disposto a cuidar delas, nós os trouxemos para cá, e cuidamos delas com o que podemos.
Só então Sir Amig começa a reparar nas paredes com rachaduras, nas roupas esfarrapadas das crianças e a total ausência de ornamentos sagrados de ouros, muito comuns nas residências do clero cristão. E viu um pequena menina, que seria muito parecida com a sua neta, se não fosse pela cicatriz correndo metade do rosto e a falta de um olho.
- Merda, pensa Sir Amig. Ou Sir Noel.
- Enfim, Sir Noel. Se não veio trazer presentes, o que veio fazer? Pergunta a freira.
Amig olha com pesar para as pequenas criancinhas, infla seu peito e diz:
- Ora, eu disse que esses presentes não são seus? Não, eu quis dizer que não são todos pra vocês! Outros piral.. digo, crianças, também merecem ganhar presentes! Vamos ver o que Sir Noel trouxe no saco para vocês!
Os pequenos fazem uma grande farra, e se aglomeram em torno de um sorridente e simpático Sir Noel. Alguns meninos brincam com pequenas espadas em fio, enquanto algumas meninas brincam com tecidos e bonecas. A jovem ruiva se aproxima, olha para dentro do saco e pergunta:
- Sir Noel, posso ver isso? Diz, apontando para a taça adornada de dragões.
- Ora pequena, e porque quer algo tão chato? Pergunta Sir Noel.
- Hmm, mais ou menos por causa disso, e aponta para o pequeno martelo de Thor que Sir Noel usa no pescoço. Entendendo que a pequena é uma pagã, e que no futuro essa taça poderá lhe servir de algo para seus encantamentos, ele a entrega de presente.
Radiante, ela se vira para voltar para as outras crianças. Mas antes de ir, volta o rosto para o velho homem e comenta:
- Lindo casaco vermelho, Sir Noel!
E só agora ele repara que está com o seu casaco todo sujo de sangue. E se lembra do assaltante, e de todo o resto.
- Minha nossa! Bem, todos ganharam presentes?
Ele se levanta, e entrega o que restou dos presentes para a velha freira.
- Faça bom uso, mulher! É raro ver bons cristãos como você!
- Agradeço a generosidade, nobre senhor! Deus nunca irá esquecer seu profundo gesto de generosidade!
***
Sir Enrick e Lady Marion vagam pelo campo atrás de Sir Amig, gritando seu nome que ecoa nas pradarias brancas. De longe, escutam alguém bradar:
- Aqui, maricas!
- Papai!
Marion corre de encontro ao cavaleiro, que vem desmontado, puxando seu cavalo pelos arreios.
- Papai, que bom ver o senhor. Pela deusa, é sangue no seu casaco? O senhor se feriu?
- Não, nada demais. Mas o merdinha conseguiu me derrubar do cavalo e roubou os presentes. Se eu pego aquele safado filho de uma saxã...
Enrick não consegue segurar o riso e o gracejo:
- Tá ficando velho, heim, sogrão!
Resmungando, Sir Amig responde:
- Velho e coração mole...
- Como, sogrão?
Sir Amig se recompõe e grita:
- Velho é seu pai, seu filho de um cavalo! Vamos logo, estou com fome e meu saco está congelando!
- Mas pai, o que vamos dar de presente para nossos amigos? Pergunta Merion, aflita.
- Um abraço, um beijinho e votos de um feliz Yule!
***
Desde então, as irmãs da ordem de Santa Ângela contam a história de Sir Noel, um velho barbudo, simpático, que usa um casaco vermelho e entrega presente para as crianças de Logres nas noites frias de Natal. E, às vezes, quando “Sir Noel” se sente generoso, ele realmente entrega presente para as criancinhas pobres de Logres.
FIM
A Origem dos Herlews por Emídio Miguel Pilato Junior
Era início da primavera quando a comitiva do barão Algar Herlews seguia para o sul de Logres. Em algumas semanas iria partir em mais uma nova campanha militar, e não queria perder tempo. Seguia por uma estrada de terra batida, contornando o rio Gunnet, enquanto observava aqueles campos malditos próximos a Figsbury.
Queria ver os campos verdejantes, os pássaros voando baixo e o brilho do rio em contraste com o sol. Mas via somente sangue e amigos morrendo, e sentia uma profunda tristeza. As piores cicatrizes de uma guerra, pensou ele, nenhum elixir druida pode curar.
Os Campos de Santo Alein, como agora eram conhecidas essas terras, foram às terras de desterro de Odirsen II e Melion, irmãos do barão e Alein, seu primo cristão santificado por morrer em batalha.
Algumas horas mais adiante, o terreno se tornava familiar. Mas não familiar às ultimas campanhas militares. Familiar à sua infância. As colinas, a queda rápida do rio, algumas árvores anciãs na beira da estrada. Seguia para o núcleo do clã Herlews, as terras frias de Laverstock. Um feudo simples, as casas dos aldeões feitas com troncos de madeira negra. O lar se mantinha com o extrativismo e caça provenientes da floresta de Camelot e com a criação de búfalos.
Quando os aldeões viram a comitiva de Algar entrando na vila, fizeram mensuras com expressões que variavam da revolta para a tristeza. Mas o barão estava muito sentido para notar qualquer coisa.
No meio do feudo de Laverstock, surgia o forte Danelaw. Uma enorme estrutura de madeira quadrada, resoluta, com amplos portões de madeira. No que os cavalos se aproximaram, os portões se abriram com o tocar de cornetas. Seu pátio enorme, com uma abertura no alto para o céu dos deuses, mostrava inscrições e grafismos nórdicos que datavam dos tempos de Odir, mas as figuras e os quadros cristãos impostos por Odirsen II destoavam de tudo aquilo. Os soldados presentes acomodavam os guardas e servos do barão, enquanto uma serviçal jovem e de bons modos o recepciona com uma mesura respeitosa. Ela deve ter umas 20 e tantas primaveras, tem cabelos castanhos presos em uma longa trança que termina num adorno dourado.
- És bem-vindo ao feudo de Laverstock, Barão Algar Herlews, capitão da trop...
- Cesse imediatamente esse falatório cortes, Impa, e me de um abraço como nos tempos de nossa infância!
Impa lhe lançou um olhar matreiro, e sorriu: esse era o bom e velho Algar de sempre! Ela lhe abraça com toda a falta de pudor e decoro que sempre reinou na corte pagã dos Herlews.
Vão caminhando pelo pátio, indo em direção aos aposentos senhoris.
- Faz anos que não aparece! Não faz idéia de como sua mãe sente sua falta, ainda mais agora, nesses tempos difíceis!
- Mesmo? Achei que ela queria me ver sendo devorado pelos lobos do Ragnarok depois...
A jovem para abruptamente, e lhe lança um olhar feroz.
- Agora você deve parar com esse falatório cortes, Algar! Odirsen escolheu seu destino, e as fiandeiras foram rápidas em lhe mostrar aonde sua loucura o levaria! Ninguém melhor do que a sua mãe para saber disso!
Algar abaixa a cabeça, olha para o lado e resmunga.
- ... mas e sobre Merion?
A jovem engole em seco por um instante, e agora é ela que fita o chão de pedra do forte. Os olhos marejam e ela diz, sem fitar o cavaleiro.
- Isso, ela diz suspirando para segurar as lágrimas, sem dúvida alguma, foi o que mais nos machucou...
- Machucou a todos nós, linda Impa. A todos nós.
Algar sabia que ela e Melion se enamoravam desde a adolescência. Planejava até ir morar próxima de Glastonbury, para ficar mais próximo de Avalon e poder vê-lo com mais freqüência. Mas agora tudo é saudade.
Ficam por um instante parados no meio do pátio. Algar olha para o céu azul sob a sua cabeça, enquanto Impa se abraça e olha para os lados, esperando se recompor.
Ela finalmente quebra o silêncio, dizendo:
- Bem, vamos lá. Decididamente, Lady Gladd ficará muito feliz em ver seu... último filho vivo.
* * * *
Após algumas batidas secas, Impa empurra a grande porta de madeira do quarto de sua senhora. À frente, um grande aposento, com uma cama de casal de madeira resistente no meio, uma bela penteadeira de um lado. No outro, uma senhora está ajoelhada diante de algumas velas. Um forte cheiro de flores preenche o ar.
- Lady Gladd, perdoe-me pela intromissão, mas tem alguém aqui que deseja muito vê-la.
A mulher demora mais alguns instantes diante de seu ritual. Levanta-se, mostrando em plenitude um belo vestido de veludo verde, com as bordas douradas. Ela se vira para a porta, mostrando um rosto triste, marcados pelas rugas de 50 primaveras, com os cabelos presos em um coque. Mas sem dúvida se trata de uma senhora bela.
Na porta surge Algar, com a postura de mensageiro valente mas com olhos de criança, implorando perdão. Somente diante de parentes tão chegados o barão não demonstrava o particular orgulho e vaidade nórdica. Não precisava disso dentro da fortaleza do clã.
Lady Gladd não consegue conter-se a e caminha rapidamente em direção ao filho, e o abraça. Algar abraça a mãe e encolhe a cabeça ao lado da dela. O tremular de soluços da nobre senhora são visíveis, enquanto Impa observa tudo da porta, já não segurando as lágrimas. Ainda enlaçados, Algar fala:
- Minha mãe, me perdoe...
- Não, ruivinho, está tudo bem. Está tudo bem.
Algar desarrocha os braços de torno de sua mãe, mas ela ainda está abraçada mais alguns segundos. Ela então o observa, e começa a caminhar enganchado ao seu filho, indo em direção à beirada da cama.
- A senhora está bem? Quer dizer, não lhe falta nada, minha mãe?
- Ah, meu filho, está tudo bem. Seu tio Briant foi rápido em prestar ajuda às despesas do feudo. E em reclamá-lo para si também...
Algar não acreditou no que ouviu. Fez menção de demonstrar seu descontentamento em plenos pulmões, mas sua mãe interveio com calma.
- Tudo bem, meu ruivinho, tudo bem. É o preço da paz, e de qualquer forma, ele tem sido muito gentil. Afinal, quem quer a fúria do demônio do norte pairando sob seu pescoço?
- Minha mãe, não me chame por esse apelido de caserna...
- E minha nora, como está? E o bebê, Bryan, não é isso? Como ele está?
A conversa sobre amenidades cruza uma tarde. Tomam chá, andam pelo pátio do forte e relembram a história de seu clã.
Quase anoitecendo, Lady Gladd leva seu filho até uma sala que ele conhece muito bem. Uma pequena sala cheia de pergaminhos, contendo documentos da família, diários e textos da história antiga. Em uma pequena escrivaninha, alguns papéis.
- Os criados acharam mais alguns papéis antigos. Espero que sejam de seu interesse...
- Mas o que são? Diários?
- Se assemelham mais a documentos romanos, embora sem os selos imperiais. Venha, veja isso.
Algar se aproxima de uma mesa que contem alguns papiros. De letra corrida e com o couro de bode levemente amarelado, ele corre os olhos pelas palavras em latim. Não domina muito bem a fala, mas compreende algo dos textos. Pelo pouco que vê, se surpreende.
- São relatos de um historiador romano sobre os povos bárbaros, vizinhos dos romanos. Mas porque isso está entre as nossas coisas?
- Seu bisavô comprava muitos pergaminhos que eram encontrados em ruínas romanas. Mas era bastante seletivo com o que adquiria. Seja o que for, devia ser de alguma relevância para ele... ou para nós.
“trecho extraído das Crônicas da Germânia Inferior e Além, do centurião Abelardus Ambrósius”
“28 de Abrilis, 1234 AUC (ano de 381 no calendário juliano)”
“Após uma difícil travessia pela península da Anglia, ao norte da Germânia, nossa centúria chegou à ilha de Sjaelland cruzando o mar báltico. Nossos aliados da Rúsguia já partiram do norte, e esperamos interceptar os saxões de passagem pela região, facilitando a fuga de nossos aliados.”
“É muito fria essa região inóspita, muito mais que os alpes do norte da Itália. Sua infinitas florestas de pinheiros preenchem as paisagens, enquanto alces e outros grandes mamíferos pastam as duras plantas das tundras. Seu solo rochoso dá a população de bárbaros locais somente caça e algumas frutas vermelhas. Não estranho de fugirem desse inferno de gelo para as terras quentes do Império Romano.”
“Chegamos na capital do reino bárbaro, uma vila circundando um grande forte de madeira, chamada Herlev. Seus habitantes possuem cabelos cor de fogo, olhos verdes e são muito altos, não destoando muito dos outros bárbaros do norte. Seus guerreiros são fortes, suas mulheres vigorosas, e não demonstram o pudor presente nas boas mulheres de Roma.”
“Seu rei, também chamado de Jarl, é Olaf, o Urso de Wotan. Para um bárbaro, possui um bom temperamento. Fala um latim sofrível, mas o bastante para perceber que era um homem sensato e corajoso. Suas tropas já estavam organizadas e prontas para partir para o sul. Seus batedores tinham visto a marcha de um centena e meia de homens seguindo para o norte.”
“Enviando a 24ª centúria da Germania Inferior e um contingente de 50 bárbaros, partimos para o sul gelado. Metade dos meus homens estavam ficando roxos de frio, e pelo menos uma dezena de homens já tinham morrido por isso. No entanto, os dinamarqueses pareciam gostar desse clima. Como comentou o jarl Olaf – ‘Bom lutar com clima fresco!’. Ele estava sempre de bom humor, acompanhado pelo seu filho Odir, um jovem robusto e forte, que aprendia a comandar os homens com o seu pai.”
“Na beira de um pequeno riacho, armamos acampamento e esperamos as tropas inimigas. Se tem algo que me irrita, são os modos caóticos dos bárbaros: enquanto meus homens se matavam cavando trincheiras e fazendo estacas, eles só sabiam comer, beber e dançar em volta das fogueiras. Pintavam o rosto de preto e mataram um coelho para alguma divindade pagã. Que cristo me proteja, espero que não seja um sacrifício para os demônios.”
“No fim do quarto dia, nosso batedor voltou dizendo que os germânicos estavam chegando. Da mata de pinheiros ao longe, foram surgindo um por um. Ficaram a uma distancia segura, analisando nossa formação. Mais meio dia, e decidiram atacar. Correndo como loucos com seus machados e escudos redondo, gritando e fazendo caretas. Meus homens estavam em formação, esperando o choque da infantaria. Os homens de Olaf berravam em resposta, cuspindo e xingando. Na distância combinada, os nossos aliados avançaram em disparada pelo flanco, com o fim de fechar os inimigos contra a formação da centúria. Seus homens fortes forçaram o flanco esquerdo, e mandei a centúria avançar.”
“Foi uma chacina de inimigos. Todos lutaram com bravura, mas quem mais me surpreendeu foi Odir. Esse jovem lutava como um demônio, se jogando contra as linhas inimigas e retaliando todos com seu grande machado. No retorno à Herlev, conversei com o Jarl Olaf, para que eu pudesse levar o jovem Odir comigo para o império. Lá, poderia se tornar um brilhante centurião. Claro, com isso também queria a paz com os bárbaros, e uma aliança para quando expandirmos o império para o norte.”
“Embora o velho Olaf não tenha gostado muito da idéia, seu filho ficou muito empolgado com a idéia. Teimoso como uma mula, conseguiu dobrar o rei e voltou conosco para a Germânia Inferior. Agora, posso finalmente voltar para a Bretanha e expulsar os malditos celtas de Logrum e conseguir mais prestígio no império!”
FIM