PRÓLOGO
No ano 475, do Nosso Senhor, O grande Império Romano, que se estendia do Ocidente até o exótico Oriente, foi atacado pelos bárbaros. Na ilha, chamada Britânia, depois de quatrocentos e quarenta verões, o Império invasor e suas legiões voltaram ao continente para se defenderem. Os muitos reinos Britânicos mergulharam em um choque de crenças religiosas sem precedentes. Colocando em trajetória de colisão os Reis de cada porção de terra, agora, sem um poder central e a mão de ferro do Invasor para lhes proteger.
Em um desses reinos Britânicos, chamado Logres, no ano de 485, reinava um homem chamado Uther. Seu irmão Aurelius Ambrosius, ambos filhos de Constantino, um Imperador Romano que governou grande parte do território antigo, desembarcou na ilha para expulsar um inimigo comum. Os Saxões, bárbaros germânicos, violentos e sanguinários, que vieram conquistar terras e riquezas, aproveitando-se da ilha desprotegida. Aurelius derrotou-os e tornou-se o Rei Supremo, ostentando o título de Pendragon. Muitos anos depois, o Rei Aurelius Pendragon foi envenenado e morto marchando contra um exército de Irlandeses aliados aos Saxões. Seu irmão tomou seu lugar na vanguarda da Batalha e os venceu. Com a gratidão dos nobres, agora aclamado como Uther Pendragon, o irmão de Aurelius ascendeu ao trono de Logres.
O FORTE VAGON
Na Primavera de 485, os escudeiros Edgar, filho de Flavius, o imortal e Algar Herlews, filho de Odirsen I, depois de terem sido escudeiros por dez anos foram enviados pelos seus senhores ao Forte Vagon, a oeste da cidade de Sarum, sede do poder local do condado de Salisbury, para finalizarem o seu treinamento militar e candidatarem-se a cavaleiros.
— Então Romano, finalmente chegou a hora — disse Algar animado
— Depois de tanto tempo servindo Sir Gwrien não poderia esperar algo diferente — Edgar olhava para frente enquanto conduzia sua montaria com um ar de superioridade pela estrada romana de paralelepípedos.
Logo à frente em uma colina do lado direito da estrada um monte coberto de relva verde se erguia um forte circular construído com toras de madeira e quatro torres de vigia para arqueiros em cada canto da paliçada. Ao se aproximarem, carregando o brasão de suas famílias, o portão principal foi aberto e o sargento do forte veio os receber.
— Pois não, senhores?
— Fomos enviados por Sir Gwrien e Sir Eurion para finalizarmos o nosso treinamento sargento — disse Edgar com orgulho contido — Aqui estão as nossas cartas de recomendação escritas pelo Conde Roderick de Sarum.
O sargento examinou com cuidado a carta com o selo do conde.
— Podem entrar, sejam bem vindos a Vagon jovens mestres.
Os dois escudeiros deixaram os seus cavalos com o cavalariço do forte e foram guiados por um pagem pelo pátio principal de chão batido. Algumas galinhas ciscavam o chão enquanto duas cabras andavam soltas por ali. Bonecos de palha e um escudo suspenso por um braço articulável no topo de um troco para treinamento de lanças a cavalo, o quintam, foram construídos perpendiculares aos alojamentos. Os soldados destacados no forte, todos plebeus, faziam trabalhos cotidianos e não se preocupavam com a presença dos dois jovens. Caminharam, então, até a comprida casa de madeira com telhado de palha que servia de abrigo. Os alojamentos eram simples. Montes de palha serviam de camas e uma mesa grande para os homens, doze no total, fazerem as refeições. Na área dos nobres, para onde foram levados, os três quartos eram individuais, com camas e colchões de pena. As refeições eram separadas da casta menor formada por soldados.
— Senhores, ordens do Marshall, peguem as suas armas e escudos e aguardem no pátio principal — o sargento disse com um leve sorriso irônico no rosto.
Os dois jovens foram até lá e se posicionaram um ao lado do outro. Alguns soldados se cutucavam e apontavam discretamente para eles. Algar com um machado à cintura, com o seu escudo redondo na mão esquerda, herança nórdica de sua família, vestia uma cota de malha, enquanto os seus cabelos ruivos longos saíam pelos lados do seu elmo aberto em formato de ogiva. Edgar, armado com uma gladius e um escudo quadrado romano denunciava a sua origem. Sua armadura de placas e seu elmo com o penacho vermelho, indicava que o rapaz de cabelos pretos e curtos era um nobre, filho do antigo Império invasor. No sol forte da primavera a dupla espererava. O suor lhes descia pelas faces coradas e a cede começava a incomodar. Os soldados passavam por eles como se não estivessem ali.
— Algo me diz que o treinamento já começou — disse Algar já não com tanta animação.
— Eu pensei que, hoje ainda, veríamos ação — falou Edgar irritado.
O tempo foi passando até que finalmente no final do dia, quando os dois escudeiros estavam com as pernas em frangalhos, suados e exaustos, um cavaleiro vestindo uma armadura de placas prateadas, com um cavanhaque branco e cabelos longos da mesma cor, surgiu pela porta do alojamento destinado aos nobres. Ele caminhava lentamente comendo uma suculenta maçã. Jogou o que restava dela no chão e se aproximou sério com as mãos para trás. O veterano, com pelo menos quarenta verões, observava cada centímetro dos dois jovens nervosos.
Então são vocês os enviados para se candidatarem a Cavalaria do Rei? — o cavaleiro veterano deu uma risada abafada — E estão aí sofrendo para segurar seus escudos por algumas horinhas no sol. Vejamos o que sabem fazer cansados e usando armas. Cavalariços, tragam as montarias e as lanças!
Sem dizerem nada os dois montaram em seus cavalos. Com a ordem do comandante do forte, Edgar tentou acertar o braço do quintam, simulando um ataque à um cavaleiro inimigo. O Romano acertou da primeira vez. Logo em seguida veio Algar fazendo uma carga rápida contra o quintam e errou majestosamente a investida. Na segunda tentativa, com habilidade, Edgar acertou novamente. Mais uma vez Algar errou o escudo do aparelho, quase caindo de seu cavalo. O garoto ficou com cara de poucos amigos ouvindo os risos abafados dos soldados.
— É isso que você tem para me mostrar, garoto? — disse Sir Elad, comandante do forte Vagon e Marshall do condado de Salisbury.
— Senhor, meu pai é nórdico, sempre treinei com machados.
— Uma arma bárbara para tempos bárbaros, não é mesmo? — falou Sir Elad jogando um machado de uma mão para Algar que o apanhou no ar e começou a testá-lo em movimentos em arco. — Agora não há mais desculpas. Me mostre realmente o que sabe — disse o veterano com um ar severo.
Então Algar, ansioso, se lançou com tanta vontade, empunhando o pesado machado de guerra de duas faces contra o quintam, que o aparelho levou uma pancada tão grande e girou com tamanha velocidade vindo de encontro a Algar, pelas costas, que instintivamente o escudeiro golpeou de cima para baixo cortando o suporte de madeira que suspendia o escudo tornando o aparelho inútil.
— Está bom assim Sir Elad ? — disse Algar sorrindo.
— Não era bem isso que eu tinha em mente. Mas... gostei garoto.
— Força bruta não é tudo Algar. O problema vai ser quando o outro lado revidar. Toda essa força não vai te valer de nada — disse Edgar sério.
— Não se preocupe, ele não revidaria, seu braço estaria no chão numa hora destas e o inimigo do outro lado se esvaindo em vermelho — Algar ria satisfeito enquanto descia do cavalo e seguia Sir Elad até ao alojamento para tomarem um gole de cerveja azeda.
A noite passou tranquila com os três conversando sobre a vida na cavalaria. Sir Elad disse aos dois jovens inexperientes como deveriam agir e se portar diante dos nobres mais velhos. O que eles deveriam esperar das obrigações de vassalagem que existiam entre os mestres e seus escudeiros e entre os mestres e o Conde Roderick, administrador do condado de Salisbury. Ainda instruiu os rapazes ao dever maior de vassalagem, uma tradição existente a centenas de anos no Reino de Logres. A lealdade que todos os Cavaleiros tinham para com o seu Rei. O grande Uther Pendragon.
Na manhã seguinte Sir Elad entrou nos alojamentos, encarando os dois escudeiros por alguns segundos. Eles comiam ovos de galinha cozidos e tomavam leite de cabra despreocupadamente. Os dois se levantaram imediatamente fazendo uma reverência ao Marshall.
— Homens, necessito de seus talentos com armas. Não se esqueçam que suas ações estão sendo testadas. Mandarei-os em uma pequena tarefa aqui no condado. Os camponeses tem trazido a notícia de que existe uma fera que se alimenta de homens ao norte de Tilshea, a meio dia de cavalgada daqui, no vale depois das colinas na vila de Imber. Confesso que eu nunca tinha ouvido uma história assim por essas bandas. Deve ser algum cão selvagem vindo da floresta que vem matando os animais. Mas, vão com cuidado e resolvam o problema, pois os habitantes alegam ser muito perigoso viajarem e trabalharem nessas terras. Um grande amigo, um cavaleiro chamado Sir Amig solicitou a ajuda. Alguma pergunta?
— Sim senhor — disse Sir Edgar limpando as mãos em um pano em cima da mesa — falamos com quem quando chegarmos lá?
— Em Imber perguntem por Garr, o velho. Ele é o padre da vila. Partam imediatamente — disse Sir Elad com voz severa.
A VILA
Depois do almoço, a viagem iniciou seguindo a estrada real de Salisbury. Ela é chamada de Real pelos Britânicos mas na verdade as principais estradas da ilha eram antigas vias construídas pelos romanos. Com a queda do império elas ficaram abandonadas e muitas delas passaram a serem danificadas pela ação do tempo e tomadas pela relva. De qualquer forma era a maneira mais rápida de viajar através da Britânia.
Depois de atravessarem as colinas suaves. Os dois escudeiros avistaram, no alto de uma das elevações, a colina Hamburg, onde um velho forte abandonado nos tempos antigos era usado para a defesa do condado. No fim do dia no horizonte, na encruzilhada entre as estradas, um dos locais sagrados dos druídas e daqueles que ainda seguiam a antigas tradições era iluminado pelo pôr do sol dourado. O circulo de pedra erguia-se ali, imponente, à milhares de anos. Era Stone Range.
Edgar e Algar atravessaram as montanhas pela estrada que serpenteava até o vale, de onde se via a densa floresta oeste de Salisbury. No fundo do vale, depois das montanhas, surgia a vila de Imber, iluminada pelas lanternas de óleo penduradas para fora das casas humildes feitas de pedra e telhados de palha mofada.
Quando a dupla entrou na vila perceberam que as plantações e pomares estavam intocados. Comidos por animais e passarinhos. O trabalho nos campos era inexistente naquela paragens. Não se via uma viva alma nos caminhos de terra por entre as casas. E as janelas e portas estavam todas trancadas.
— Tudo silencioso e calmo — disse Edgar enquanto mantinha a mão em sua gladius que levava à cintura.
— E você sabe o que isso significa — completou Algar ajeitando a mão que levava o escudo redondo de tília.
— Encrenca — falou Edgar com a respiração acelerada pela ansiedade.
Trotaram sem fazer muito barulho procurando alguma taverna, mas nada encontraram. Até que em uma das ruazinhas avistaram uma pequena igreja, não muito maior que uma das casas. A única com uma cruz tosca no alto da junção do telhado e com luz de velas vindo do interior. Apearam de seus cavalos, sempre olhando ao redor e alertas, e bateram na porta da frente do templo. Depois de algum tempo ela se abriu e um velho padre com os cabelos grisalhos e sujos, com a barba por fazer, meio corcunda e com os olhos cheios de cataratas veio atendê-los iluminando seus rostos com uma lanterna pendurada em suas mãos.
— O que querem? — disse o padre tentando enxergar os rostos dos garotos.
— Fomos enviados por Sir Elad. O senhor é Garr, o velho? — falou Algar com certa apreensão.
— Sim meu filho. Graças ao bom Deus vocês chegaram — exclamou o Padre com a voz rouca e arranhada pelo tempo. — Fico muito feliz com a sua chegada, mas não esperava meninos com não mais que quinze verões.
— Dezessete Padre! — falou Edgar repreendendo o velho homem.
— Desculpe, é que na minha idade todos parecem jovens. Entrem e deixem-me explicar o que está acontecendo.
Quando entraram os dois jovens escudeiros se depararam com uma cena mórbida que os abalou profundamente. O velório de uma garotinha no meio do salão. O pequeno caixão simples levava o corpo de uma menina. As velas davam uma coloração amarelada à tudo. Inclusive ao rosto pálido da criança coberta de flores e um véu branco. Alguns homens e mulheres choravam ao redor e nem se deram conta da presença deles. O Padre os chamou para um canto e lhes contou o que ocorria.
— Ontem os restos do corpo desta garotinha foi achado devorado perto da floresta. Nas últimas semanas nossas ovelhas e vacas também foram mortas. Espero que vocês possam nos salvar. Estamos todos orando para que essa mal desapareça da nossa comunidade.
— Conte conosco Padre — Edgar falou sem ter muita certeza.
— Por hora precisamos descansar — Algar disse.
— No celeiro atrás da igreja, depois levarei um pouco de pão preto e cerveja. — o Padre pediu silêncio com um gesto levando o indicador aos lábios.
Depois de dormirem entre algumas vacas e galinhas num monte de feno, nas primeiras horas da manhã os dois escudeiros foram acordados por latidos de cães e conversas no lado de fora do celeiro. Lá fora puderam ver três aldeões, com as suas roupas gastas e carcomidas acompanhados de seus cachorros. O Padre Garr estava com eles.
— Bom dia garotos. Trouxe esses caçadores para ajudá-los.
E lá foram eles se embrenharem na floresta densa do oeste da ilha. Dentro da mata, pouca luz entrava por entre as copas das frondosas árvores. As raízes grossas brotavam do chão lameado pela garoa que tinha caído durante a madrugada. Em silêncio, passo por passo eles caminhavam. Depois de algum tempo um dos caçadores falou.
— Vejam esses galhos. Um animal bem grande passou por aqui. A seiva das plantas ainda está viva. Deve fazer pouco tempo.
Os caçadores deixaram os cachorros cheirarem os troncos próximos e o caminho por onde o suposto animal tinha passado. Eles seguiram em frente mais um pouco e logo viram, em meio à um grupo de salgueiros altos, as marcas de unhas de uma fera à três metros do chão. Em silêncio se olharam e balançaram as cabeças afirmativamente, concordando com a presença de uma fera muito maior que esperavam. Um cheiro forte de urina e tufos de pelo jaziam pela trilha da floresta. Os caçadores ansiosos e apreensivos se olharam assustados quando os cachorros começaram a latir. Algar e Edgar já levavam as mãos às suas armas enquanto erguiam seus escudos na altura dos olhos. As respirações de todos estavam aceleradas. Os cachorros correram latindo. Depois um breve silêncio. Vários latidos novamente seguido pelo choro dos animais e tudo que restou foi o som da floresta novamente.
Andaram todos devagar. Algar com o seu machado e Edgar com a sua Gladius liderando o grupo em posição de guarda. Puderam provar os sentidos se aguçando a medida que a tensão aumentava. Derrepente, surgindo de suas visões periféricas da direita para a esquerda, um grande urso negro, o maior que já tinham visto, saiu do meio das folhagens urrando. Pego de surpresa Algar gritou.
— Cuidado Edgar à sua direita!
O Romano sem pensar, só teve tempo de girar o escudo quadrado para absorver o golpe do animal que se levantava a três metros do chão, derrubando Edgar na terra molhada. Ao mesmo tempo Algar saltava com o seu machado e golpeava a garra do animal deixando o membro da criatura dilacerado dependurado por um tendão. A besta urrava de fúria e dor enquanto girava espalhando sangue nos caçadores que se escondiam atrás das árvores próximas. Em um só golpe o grande urso contra atacou rasgando a armadura e depois a pele de Edgar prostrado à frente do animal. O sangue jorrou e a sua visão turvou de dor. O jovem Romano em um golpe desesperado riscou o ar da esquerda para a direita na altura da coxa do urso, mas perdendo muito sangue inconsciente caiu de cara na lama. A besta ajoelhada e ferida ficou de costas para Algar que deixou o seu escudo redondo no chão e com as duas mãos golpeou mais uma vez. Dessa vez enterrando a lâmina de sua arma na criatura. O animal abriu os braços em um grito pavoroso e grave se debatendo e ao mesmo tempo atirando Algar em uma árvore próxima. O escudeiro sentiu as suas costas se chocarem contra o grosso tronco de carvalho e apagou.
— Eles ficarão bem — disse Garr, o velho, para a aldeã idosa ao seu lado, enquanto ela aplicava ervas nos ferimentos dos garotos deitados nas camas.
Após algumas horas eles despertaram, sentaram-se na cama e viram pela janela que já não era mais dia. O som lá fora de cantoria e o burburinho de risadas indicava que os moradores de Ilmer pareciam muito felizes.
— Parece que vencemos Romano — disse Algar enquanto levantava mancando.
— Você duvidava? — respondeu Edgar levantando as sobrancelhas em sinal de desdém.
— Nunca duvidei que conseguiríamos, mas não esperava quase morrer realizando a tarefa. O problema é que vocês romanos são tão orgulhosos que mesmo morrendo dão um jeito de acharem que estão ganhando — Algar respondeu vestindo a roupa que usava por baixo da cota de malha.
Lá fora quando os dois apareceram pela porta da Igreja e os moradores os aplaudiram. Imediatamente as garras amputadas da criatura foi lhes dada de presente. Um caneco de hidromel foi posto em suas mãos e muito vieram lhes agradecer. Inclusive as meninas de sua idade. Os dois heróis apreciaram isso. Entorpecidos pela bebida e felizes por estarem vivos dançaram ao redor da fogueira até o mundo ficar dando voltas. Depois de tudo, quando todos caíram de bêbados, cada um desapareceu na escuridão da noite acompanhado por uma beldade e viraram homens aquela noite.
SARUM
No dia seguinte, ao anoitecer, Algar e Edgar retornaram ao forte Vagon. Na sala do Marshall Sir Elad observava as cicatrizes no pescoço do Romano e o caminhar descompassado de Algar enquanto bebia um caneco de hidromel.
— Quer dizer que vocês quase morreram lutando com um urso? — disse o comandante rindo.
— O Senhor sabia que era um urso? Porque não nos contou? Teria facilitado um bocado — falou Algar indignado
— O que mais seria? Um dragão malvado com um tesouro na montanha? Isto só existe em historinhas para crianças dormirem — Sir Elad balançou a cabeça desdenhando dos garotos. — Pois bem, foram iniciados. Arrumem suas coisas. Iremos nos encontrar com o Conde Roderick em Sarum.
Os três viajaram todo o dia pela estrada real até Sarum. Pelo oeste, ao pôr do sol, eles chegaram nas muralhas de pedra da cidade pelo oeste. No portão de Damas, que levava o nome da filha do primeiro Lorde que governou a cidade, vários comuns entravam e saiam. Os guardas, verificavam e cobravam taxas, pagos pelos passantes com pequenas moedas cunhadas em prata, para que pudessem passar pela ponte levadiça que cobria o fosso. A cidade, como todas, em um dia de calor cheirava à uma mistura de esgoto, comida e bosta de cavalo. Sir Elad trotava à frente dos dois garotos em meio à uma multidão que baixava a cabeça em sinal de reverência ao Marshall do condado. Edgar e Algar apreciaram o poder que o cavaleiro possuía.
Os dois jovens escudeiros trotavam devagar observando fascinados as ruas movimentadas feitas de pedra. Na esquerda estava o mercado da águia, com a grande estátua de pedra com as asas abertas rodeada de barraquinhas e vendedores de todos os tipos de quinquilharias vindas de toda parte do antigo Império Romano. Próximo dali a Catedral de Santa Maria se erguia imponente como um monumento a nova religião. A maior construção que os dois já tinham visto.
No alto de uma colina artificial, no centro da maior cidade da Britânia, erguia-se o castelo do Conde Roderick. A sede do poder do condado de Salisbury. Na verdade a construção era uma fortaleza feita de toras de madeira reforçada. Um forte de colina, circulado por uma paliçada na parte de baixo, ladeado por um fosso, onde ficam as estrebarias e alojamentos das tropas do Conde e na parte superior, ligado por uma escadaria de madeira, a construção principal, em formato cônico, com as demais dependências do castelo. Naqueles dias o esplendor das construções romanas foram deixados para trás e trocados por castelos rústicos e sem conforto em troca de maior segurança.
— Vocês dois! Estaremos entrando no salão de audiência do Conde - disse o Marshall para os garotos - Tenham cuidado. Não falem se não forem solicitados, não mexam em nada e não perguntem nada! Ou terão suas partes arrancadas e jogadas para as cabras comerem.
O castelão recebeu Sir Elad com grande reverência. Quando entraram no salão os três curvaram-se em respeito ao Conde Roderick. Um homem que já tinha vivido cinquenta verões e tinha cicatrizes de batalha nos braços e rosto. Sua barba espessa e os cabelos curtos grisalhos davam um ar maduro ao homem que tinha lutado a vida inteira em nome do Rei. O Marshall e o Conde conversavam animadamente enquanto Algar e Edgar aguardavam de pé no fundo do salão. Esperaram pacientemente até que foram chamados.
— Muito bem escudeiros! Gostaria de saber com as suas próprias palavras a versão dos fatos que Sir Elad acabou de me contar.
— Bem conde, na verdade a Besta era enorme! Tinha dentes afiados e garras tão grandes que faziam o sangue de qualquer herói gelar — disse Algar enquanto Sir Elad fazia uma cara de que não estava gostando do rumo que a conversa estava tomando.
— Mas foi fácil! Um golpe de gladius ali, outra machadada do meu amigo acolá e o animal estava morto. — Edgar se gabava.
— Muito bom — disse Roderick — deixe me ver as garras dessa criatura saída do inferno.
Então empolgado Algar tirou de sua algibeira uma delas e deu para o Conde examinar.
— Digamos que a fera não era tão grande assim — disse Roderick sorrindo — mas está bem garotos, foram corajosos e mostraram o seu valor.
— E Conde, se me permite, teve mais — disse Algar para espanto de Sir Elad — depois dançamos, bebemos e tinham uma moças muito atraentes que eu e Edgar pegamos e...
Sir Elad, com o rosto ruborizado, interrompeu o garoto — Quieto Algar! Nos poupe dos detalhes. Aguardem na sala da corte. Tenho negócios para discutir com o conde.
Quando adentraram o segundo piso do castelo a música de dois bardos enchia o ambiente. Um dos homens tocava uma rabeca enquanto outro o acompanhava no alaúde. Algumas ladies cochichavam e riam enquanto os olhavam entrar timidamente. Outros nobres bebiam enquanto conversavam distraídos. A maioria deles eram jovens. Os mais velhos tinham obrigações a serem cumpridas e não tinham tempo para as trivialidades da corte.
— Senhores, anuncio a presença dos nobres escudeiros Algar Herlews e Edgar filho de Flavius — gritou o cortesão enquanto todos pararam e os observaram de cima a baixo.
Logo, os outros nobres, perderam o interesse e continuaram suas fofocas. Os dois garotos adentraram o salão e sentaram em uma das mesas vazias. Um cavaleiro, com não mais que dezenove verões, com um ar insolente e debochado se aproximou apoiando-se na mesa.
—Sejam bem vindos à corte escudeiros. Acredito que seja a primeira vez que entram nestes salões. Sou Sir Jaradan e vocês são aqueles que vieram com Sir Elad, não é? Já vi candidatos melhores.
—Já vi cavaleiros mais educados — disse Edgar levantando da mesa. Algar fez o mesmo movimento encarando o cavaleiro que com uma risada irônica se afastou levantando uma taça de hidromel.
Uma das Leides se aproximou sorrindo.
— Não liguem pra ele, só porque é o melhor espadachim da corte está sempre querendo uma luta para desafiar suas habilidades. Meninos adoram mostrar que são durões — disse Leide Adwen olhando curiosa para Algar — Você não parece ser Celta.
— Não sou, mileide. Meu avô, Eric Herlews, veio do norte, das terras geladas em um barco de piratas com cabeça de dragão. Na costa Britânica se chocaram contra as pedras e cá estou eu.
— Fascinante — respondeu Adwen flertando com Algar — Desculpe Algar mas minha dama de compania está me olhando como se fosse me arrancar meus olhos fora. Espero lhe ver em breve — a bonita jovem ruiva fez uma reverência e se retirou.
— Parece que têm alguém apaixonado — brincou Edgar.
— Não enche romano!
O banquete com o Conde Roderick seria servido ao cair da noite. Uma comprida mesa para cinquenta pessoas foi trazida pelos servos no salão do conselho. Conde Roderick sentou-se na cabeceira e os cavaleiros com maior prestígio e glórias foram os que se sentaram mais próximos dele. Os escudeiros se sentaram no final da mesa.
- Rapazes! Comam como porcos e bebam como uma mula - disse o conde - Assim quando tiverem a oportunidade de lutar em meu nome e os saxões lhes xingarem de porcos não poderão dizer que não o são.
- E a mula meu Conde? - perguntou Sir Lockian, não contendo o riso, com os seus cabelos armados e a barba cheia de farelos de pão e espuma de cerveja.
- A mula eu deixo para você se satisfazer meu nobre cavaleiro!
Todos explodiram em risos enquanto um javali inteiro entrou carregado em uma estaca por dois serviçais. O hidromel enchia as taças que se esvaziavam com rapidez até que o Conde se levantou e mandou todos ficarem em silêncio.
— Sir Elad, existem candidatos à investidura?
— Sim, meu senhor! — Sir Elad respondeu levantando-se e caminhando para trás de Algar e Edgar pousando suas mãos em seus ombros.
Quando Roderick dirigiu-se para os jovens escudeiros eles engoliram seco, assustados.
— Levantem-se. Vocês estão prontos para a cerimônia de iniciação. Os seus senhores, aos quais serviram com honra e lealdade, lhes desobrigaram para poderem se tornar cavaleiros de Sarum e do Rei. Que assim seja. Estejam prontos amanhã ao amanhecer. Agora retirem-se e não ousem voltar à esse salão como escudeiros.
Todos os nobres aplaudiram entusiasmados batendo com os seus punhos à mesa de carvalho.
A INVESTIDURA
Os dois garotos foram levados até a capela do castelo. Assustados e apreensivos Edgar e Algar oraram de joelhos por toda a madrugada. Ao amanhecer tomaram um banho com ervas e depois saíram os dois, vestidos com uma longa túnica branca, em procissão pelas ruas. O brasão de suas famílias os seguiam levados por dois pagens enquanto o padre William caminhava atrás com uma cruz na ponta de uma lança longa. Todos os plebeus nas ruas se curvaram enquanto os dois passavam. Alguns lhes desejavam sorte. Existia um segredo do qual Algar não dividia com ninguém. Ele era seguidor da antiga crença. Um pagão. Mas nada disso importava naquele dia. Ele seria armado cavaleiro e um dia poderia ser um herói famoso, como aqueles das histórias que sua aia contava quando era criança.
Quando entraram na Catedral de Santa Maria todos os nobres se levantaram. Emocionados, seus antigos mestres, seus pais e irmãos os aguardavam. Bispo Roger e dois noviços os vestiram com túnicas vermelhas. Quando chegaram à frente do altar Conde Roderick os aguardava.
— Ajoelhem-se escudeiros! Vocês vieram aqui para tornarem-se homens virtuosos e justos. Recebam agora os instrumentos para que realizem tais atos — do altar o conde lhes entregou suas espadas, as esporas, depois os escudos e por último as suas armaduras — Recebam em nome do Rei e do poder maior estes instrumentos consagrados para que tenham proteção e possam fazer valer a vontade dos que os protegem. Que seja conhecido por todos os homens que eu Conde Roderick, para surgir da virtude da honra, lealdade, valor e habilidade com armas para o mais alto ranking da cavalaria estes homens — disse alto o Conde com imponência e cerimônia — Vocês juram a mim em nome do Rei Uther serem verdadeiros e justos?
— Nós juramos — disseram os dois escudeiros.
— E em nome do Rei Uther defendê-lo e obedecê-lo até que ele deixe o trono ou a morte o leve?
— Sim senhor! — responderam os dois lembrando do protocolo ensaiado.
— Que isto ocorra pela última vez como homens comuns — e Conde Roderick com a sua mão enluvada, lhes esbofeteou com força — Repitam: “Eu solenemente juro e rogo pela minha espada, defender o Conde Roderick bem como a honra da cavalaria e obedecê-lo até minha morte” — os dois jovens repetiram com todo cuidado aquelas solenes palavras — E eu de minha parte, juro defendê-los e reconhecê-los como verdadeiros cavaleiros — falou o conde tocando com a espada os ombros de Algar e por último os de Edgar.
Enquanto os pagens ajustavam as correias de armaduras compostas de couro fervido, com peitoral de aço, toda nobreza na igreja se curvava em sinal de respeito a investidura. As lágrimas corriam pelo rosto dos jovens. Os sinos da catedral tocaram e lá fora o povo os aplaudiam. Algar e Edgar eram agora além de homens, guerreiros prontos para sujar de sangue as suas mãos em nome da verdade e da justiça. Mal sabiam que nem sempre as coisas seriam do jeito que desejavam.
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